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Mestra nada

Meu primeiro encontro com a bipolaridade

 

Acredito que nossas histórias começam antes de nós. Eu fui uma criança muito desejada pela família. Quando nasci, meu avô paterno acabava de iniciar uma nova fase da sua vida onde o alcoolismo não estava presente. Na casa dele, viviam, além de minha avó, as três irmãs do meu pai, minhas tias queridas que fariam e até hoje fazem de tudo para somar na minha felicidade. Minha mãe era uma jovem enfermeira, trilhando seus sonhos profissionais depois de conquistar os estudos em São Paulo, vinda de uma minúscula cidade na zona rural do interior do Paraná. Meu pai, um advogado mais jovem ainda, com apenas 25 anos, buscando realizar o sonho de se firmar e poder apoiar a família e as pessoas queridas com suporte financeiro, motivação e aconselhamento.

 

Quero reforçar que fui muito apreciada, querida e amada por esses sete adultos, com quem convivi intensamente durante toda a minha infância e adolescência. Aos meus três anos veio o primeiro primo, aos quatro o segundo, e a minha irmã chegou antes que eu completasse os oito anos. As aventuras, brigas e brincadeiras do convívio com outras crianças se mesclavam com a atenção especial que sempre recebi dos adultos da família. Ninguém poderia imaginar que essa criança, inteligente, extrovertida, criativa e muito amigável, poderia vir a desenvolver um transtorno mental.

 

Durante a adolescência, começaram a aparecer o que eu hoje entendo como sintomas da bipolaridade, mas eram situações sutis que, por não limitarem ou causarem ruptura em nenhum aspecto da minha vida, não sobressaiam aos olhos de meus familiares e amigos. Minhas experiências com tudo o que era emocional eram muito mais intensas do que as de minhas amigas e colegas. Por exemplo, quando surgia algum desentendimento com uma amiga, eu chorava por dias, sentia um turbilhão de emoções muito perturbadoras, não conseguia expressar nada a ela, e terminava cortando relações completamente. Foi assim que eu comecei minha jornada de pular de amizades em amizades pela dificuldade de lidar com o conflito, coisa que busco hoje reverter nutrindo as relações que me fortalecem e encarando os conflitos com coragem e com novas ferramentas que venho aprendendo, como a comunicação não-violenta. Mesmo com esses cortes bruscos de relações mais próximas, eu vivia rodeada de pessoas e sempre estabelecia contatos e trocas muito facilmente, eu era aquela típica pessoa que "fala até com os bichos". 

 

Outra característica da minha infância e adolescência era me jogar com muita intensidade nos estudos e na vida escolar. Eu sempre acabava fazendo os trabalhos em grupo sozinha, na maioria das vezes virando noites para conseguir terminá-los a tempo. Aliás, virar noites e estar 100% animada e motivada no dia seguinte era a minha especialidade. Quando tinha alguma peça (de teatro) na escola, eu levava da minha casa os figurinos pra todo o elenco, bem como os objetos pra construção do cenário e os materiais de papelaria pra elaborar os elementos decorativos. Quando meus pais abriram uma conta para mim na cantina, gastei horrores porque todos os dias presenteava meus amigos com lanches, batatinhas, mini pizzas, refrigerantes, balinhas, entre outras guloseimas. O pior é que não conseguia acreditar quando via a conta e cheguei a acusar o pessoal da cantina de estar marcando coisas que eu não consumira! Mais tarde conversei com todos, pedi desculpas, e até hoje quando por ventura visito o colégio, damos boas risadas sobre esse ocorrido.

 

Enfim, vivi inúmeros sinais de uma intensidade muito além do comum, de uma grande dificuldade de lidar com conflitos, da energia inesgotável para qualquer atividade, de muitos problemas com limites, horários e finalizações, entre outras tantas situações que eram diferentes de meus colegas e familiares. É como se todas as coisas fossem muito mais profundas, complexas e de certa forma pesadas para mim do que para a maioria das pessoas com quem convivi. Mas eu achava que sentir e viver a vida tão intensamente assim fosse a experiência de todas as pessoas. Apenas recentemente, há cerca de um ano e meio, é que venho descobrindo que a vida pode ser muito mais leve.

 

Esse furacão de adolescência continuou, mas como os sinais de sucesso estavam presentes - ótimo desempenho nos estudos, muitas pessoas na minha rede de relacionamentos, bons vínculos com a maior parte da família, etc. - ninguém chegou a pensar que eu precisasse de alguma ajuda. Eu fazia de tudo para passar a imagem de autossuficiência. Porém nem tudo ia bem. A partir dos meus 13 anos, aproximadamente, comecei a desenvolver uma relação extremamente conflituosa com a minha mãe. Brigávamos muito, e eu por ter sido sempre muito sensível, não conseguia me afirmar, e ao invés disso ficava pensando nas dores que ela teve na vida dela, nas dificuldades que ela passou, e em como deveria ser difícil para ela ver que eu tinha uma vida muito confortável materialmente e amorosa enquanto ela viveu até os 16 anos na roça, com 8 irmãos, trabalhando na agricultura e numa convivência extremamente rude e violenta, sendo que precisou praticamente fugir de casa para poder apenas estudar. 

 

No enredo dessa agitação e dos conflitos com minha mãe é que se deu minha primeira crise de mania, aos 18 anos. O ano era 2012. Eu havia entrado na faculdade no ano anterior, e então conheci um número imenso de pessoas, estabelecendo novos laços. Logo de cara me envolvi em diversos projetos de cunho social e acadêmico, passei a frequentar novos espaços culturais e a comparecer a eventos sobre vários assuntos. Ao mesmo tempo, no meio de 2011, minha mãe se aposentou e passou a ficar integralmente em casa, o que acentuou fortemente nossos conflitos. A cereja do bolo dessa fase especialmente intensa da minha vida foi o processo de busca espiritual que eu acelerei neste ano, Eu sempre fui interessada e curiosa sobre tradições religiosas, filosofias e autoconhecimento espiritual. Já tinha frequentado a igreja católica, reuniões e tratamentos em centros espíritas kardecistas e sessões em centros umbandistas, mas nesse ano conheci mais sobre o budismo e principalmente sobre a Grande Fraternidade Branca, além dos ensinamentos de Trigueirinho. Esse profundo mergulho que fiz em componentes espirituais aguçou ainda mais minha sensibilidade e intuição. Hoje eu acredito que seja muito positivo lidar com a espiritualidade e praticar momentos individuais e coletivos de conexão espiritual, porém acho importante fazer isso com muito cuidado pra não se desconectar do corpo, do físico, da vida na Terra, do objetivo que acredito termos pra essa existência: viver a vida com presença e plenitude. Ah, pra colaborar com esse processo de imersão além da conta no mundo espiritual, sou pisciana.


Em janeiro de 2012, fui com minha mãe, uma amiga dela, meu primo e minha irmã para Arraial d'Ajuda, na Bahia. É um lugar especial para minha mãe e essa amiga dela, onde hoje elas moram. A ideia era passarmos vinte dias lá. No começo, parecia um período de férias como qualquer outro, mas com o passar dos dias, as coisas foram ficando estranhas. Todo o conteúdo de raiva e desentendimento com minha mãe, que eu vinha reprimindo ou expressando mal por anos, veio à tona. De repente, eu não podia mais suportar as interações com ela, e deixava isso bem claro com palavras duras e por vezes grosseiras. Ao mesmo tempo, a intuição espiritual crescia vertiginosamente, eu recebia mensagens direcionadas a amigos e familiares, que escrevia em papeis, cadernos e no computador, e enviava essas mensagens - inúmeras - a todos os destinatários, o dia todo. 

 

Além disso, meu sono se foi completamente. Eu me arrumava e saia à noite para o vilarejo para dançar e me divertir, no que conhecia várias e várias pessoas. As trocas com essas pessoas eram extremamente profundas, falávamos sobre traumas vividos, entes queridos que se foram, planos para o futuro. Conheci uma senhora que se tornou muito amiga minha e me acolheu mais tarde nesse mês, quando os conflitos com minha mãe tornaram a casa muito pequena para nós duas. Me apaixonei por um homem apelidado de Mun Rá, cerca de 25 anos mais velho que eu, e passeávamos pela vila como namoradinhos. Mais tarde, fui descobrir que ele é pai de cerca de 10 filhos, todos com mulheres diferentes! Ainda bem que eu não me aventurei com ele no campo sexual!

Dessas noitadas muito animadas e meio caóticas, mas sempre sem o uso de nenhum tipo de substância psicotrópica, nem mesmo bebida alcóolica, eu voltava para casa por volta das seis (às vezes até às oito) da manhã, dormia até as 10h ou 11h e já estava pronta para passar o dia todo na praia caminhando, nadando, lendo e fazendo mais e mais conexões com novas pessoas. Não admitia ficar perto da minha mãe, então ia até a praia com o grupo e, chegando lá, me separava e seguia para bem longe deles para passar meu dia. Na ida e na volta de cada passeio, ia ouvindo meus fones de ouvido, ou cantando, no máximo volume - isolamento total. Em alguns momentos, viajei para as cidades vizinhas para passeios de dia e de noite, sem dar nenhum aviso de quando ou como voltaria. Imagino hoje a preocupação que foi se estabelecendo para minha família. 

 

O Arraial é um lugar realmente muito único e especial, tanto pela natureza exuberante de matas, trilhas, falésias, rios e praias incríveis, típicos da costa sul da Bahia, como também pela peculiar união de imigrantes de diversos países do mundo, com migrantes de muitos estados do Brasil, com baianos cheios de seu encanto. A vila à noite é, de fato, um lugar mágico, com suas casinhas coloridas, restaurantes, praças, e é claro, a clássica igrejinha de Nossa Sra. d'Ajuda na beira do morro. Eu estava inebriada com o local, com as pessoas, com a experiência. No teto de um restaurante encontrei um poema sobre o Arraial, que escrevi em meu caderno e levava como uma joia preciosa comigo. Estava crente de estar vivendo um alinhamento espiritual tão profundo que todas as almas que eu estava encontrando representavam meus aliados em minha missão na Terra, eu me via como uma alma muito velha e muito ligada ao amor, como a Mestra Nada da Fraternidade Branca, e via meus interlocutores como Oxalá, Iansã, Arcanjo Gabriel, etc.

 

Um acontecimento muito peculiar foi o encontro com o Saldanha, um homem negro retinto e angolano que morava ali na vila. Encontrei com a figura pela rua em minhas andanças. Ele me "reconheceu", como eu sentia, e me convidou para ir dançar lambada no Maroto e depois para ir com ele até sua casa. A casa era um casebre nos fundos da lambada, caindo aos pedaços. Ele me pediu pra sentar no único móvel que tinha na sala, uma poltrona extremamente confortável, parecida com um trono. Ali ele me disse que eu era uma rainha, uma alma muito importante, e que eu estava encarnando ou continuando a missão da avó dele, que tinha sido muito poderosa espiritualmente e que também carregava o nome de Ana. Ali ele me benzeu e realizou alguns rituais com palavras que eu não entendia, e depois disso me deu de presente um livro sobre a umbanda no Brasil. Carreguei esse livro comigo até minha internação. Até hoje tento lembrar seu título para poder comprar uma nova versão e desvendar os mistérios que ele me entregou naquela noite, mas ainda não consegui.

 

A última noite da viagem foi o ápice da loucura. Passeei pelo centro da vila, encontrando meus "amigos" em diversos bares e casas de show. Sempre andava com meu caderninho e alguns lápis de cor, então, nesse dia, muitas das pessoas que eu tinha conhecido me escreveram suas mensagens de carinho - algumas desenharam, algumas registraram trechos de canções. Por volta das 3 da manhã, já quando as baladinhas estavam começando a dar sinais de baixa, eu me lembrei que tinha combinado de encontrar o Mun Rá na barraca de praia em que ele estava trabalhando. Ele me dera vagas direções sobre esse lugar, tudo que eu sabia é que era na estrada da balsa, mas havíamos combinado o encontro cerca de 5 horas antes, lá pelas 22h. Mesmo assim peguei uma van para lá. Chamei uma amiga para ir comigo, mas ela recusou pois era muito perigoso para duas mulheres andarem sozinhas na praia escura no meio da madrugada. Imagina pra uma só! 

 

Me despedi dela com muito carinho e fui, andei pela praia escura e deserta até encontrar um portão de uma pousada que tinha a estátua de um alienígena do lado. Pensei "deve ser aqui, esse é dos meus" e me encostei ali no portão. Do lado de dentro, tinha um quiosque fechado, com várias colunas de latinha de cerveja empilhadas. Pensei: "Com certeza o Mun Rá estava aqui, não conseguiu me esperar, bebeu toda a cerveja do próprio local de trabalho e foi embora, sabendo que seria demitido… Coitadinho...." e dormi. Quando acordei, com o nascer do sol, meu celular e meu iPod tinham desaparecido, até hoje não sei se eu os joguei fora (como vim a fazer numa outra crise bem mais adiante) ou se alguém passou e roubou da minha bolsa que estava comigo, ou se simplesmente caíram. Enfim, um dos muitos mistérios dessa experiência mágica, mística, contraditória, assustadora e solitária que é uma emergência espiritual associada a uma crise maníaca.

 

Acordei no dia 21 de janeiro de 2012. Lembrei-me da profecia Maia de que o mundo acabaria em 21 de dezembro do mesmo ano. Escrevi no meu caderno: "O mundo já acabou. Um novo começa agora" e entrei na pousada, onde conheci as pessoas que ali estavam tomando café da manhã, que me convidaram para me juntar a elas. Ali fiquei conversando por horas, até que o carro da minha mãe entra no estacionamento da pousada, arrebatando tudo. Ela estava me esperando desde às 08h para voltar pra São Paulo e já devia ser quase meio dia. Ela estava muito perturbada e tentou me agredir, com certeza estava desesperada. Enfim eu entrei no carro, gritei palavras assustadoras pra ela parar de me estapear, e surtiu efeito. Voltamos pra São Paulo, eu berrando canções a pleno pulmão na longa estrada de quase 2.000km.

 

Chegando em casa, praticamente não dormi a noite toda e de manhã, quando minha mãe saiu, senti um forte comando interno que me ordenava a "arrumar toda a casa, limpando as energias negativas". Revirei tudo, joguei muita coisa no lixo, abri todas as minhas cartinhas de amor para minha mãe e coloquei sobre a cama dela, pois sentia que ela "precisava aprender o que é o amor". Meu primo e minha irmã pediram ajuda à minha tia quando perceberam que a coisa estava fora de controle, e saíram da casa. Ficou a Claudinha, que trabalhava como empregada doméstica lá e me ajudou muito nesse dia. Quando minha mãe chegou e percebeu o estado em que a casa estava, foi atrás de mim. Eu subi as escadas e fui direto para a piscina, pensei "ela tem o tímpano furado, não vai entrar na piscina para uma luta comigo". Quando eu entrei na piscina, arrancando as flores da minha mãe do vaso que ficava ao lado, girei as flores mortas em torno de mim enquanto repetia um mantra que me fazia sentir segura e olhava fixamente nos olhos de minha mãe. Foi ali que ela, que já trabalhara em hospital psiquiátrico durante anos, percebeu que eu não estava bem. A feição dela se transformou completamente, é algo que eu jamais esquecerei. Aí então ela chamou meu pai, conversamos no melhor estilo arbitragem judiciária, eu concordei em ir até o hospital - pois tinha a total certeza de que eu estava em perfeito estado e nada aconteceria - e o tratamento psiquiátrico começou.

 

Duas semanas depois, chegou o carnaval e meus pais concordaram em que eu fosse passar o feriado com amigos no Guarujá. Parei os remédios e a montanha russa "decolou" novamente. Aconteceram ali muitas experiências, que eu posso relatar num próximo depoimento. O desfecho dessa parte da história foi minha primeira internação numa ala psiquiátrica, que foi no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Muita coisa importante aconteceu lá dentro, também. Nos anos que se seguiram, entre períodos de estabilidade, muitas tentativas de parar o tratamento medicamentoso sem acompanhamento, muita vergonha dessa experiência, e vontade de não ter nenhum diagnóstico, nenhum transtorno, nenhum problema dessa ordem para lidar e resolver, tive mais cinco crises maníacas, algumas com episódios de psicose e outras não. A última aconteceu em dezembro de 2019, e teve como tratamento imediato uma internação de um mês, até o fim de janeiro de 2020.

 

Nessa última internação, conheci minha atual psiquiatra, à qual sou muito grata, pois ela realmente abriu a porta para a minha mudança de vida, trazendo esclarecimentos que eu precisava muito ouvir para cair a ficha de que preciso cuidar da minha saúde mental. Até então, eu lia essa história assim: alguém (eu) inocente sendo perseguida e injustamente contida por pessoas incapazes de compreender o que eu estava vivendo. Hoje, tenho certeza de que não há razão pra me dizer inocente, pois ninguém está me acusando de nada. Todas as relações e oportunidades que perdi por conta desses comportamentos (chame como quiser: desequilíbrio, experiências, doença) deixaram sua marca e cabe a mim o caminho da reconstrução e da reparação. As atitudes de contenção por parte da família foram atos desesperados de tentar me proteger de mim mesma, e cara, eu precisava.

 

Hoje tenho certeza de que a minha vida está em minhas mãos, e faço de tudo para escolher com sabedoria e lucidez como conduzir, transformar e seguir a minha caminhada nesse planetinha azul. O equilíbrio da vida é dinâmico, como o trabalho de um equilibrista de pratos, e tenho achado fascinante desvendar as camadas dessa fina sintonia, entre emoções, tratamentos, alimentação, práticas integrativas, amizades, estudos, relações familiares, vida amorosa, carreira, prática espiritual, gatinhas de estimação, e tantos outros elementos que compõem a aquarela de uma rotina, de uma vida. Para qualquer pessoa, viver é uma tarefa desafiadora, e cada um tem seus pontos de maior sensibilidade. Estou aprendendo a identificar e a agir nos meus corajosamente, e tenho certeza de que o futuro me reserva coisas maravilhosas.

 

Obrigada por ler até aqui!

 

Mestra Nada

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